Sermão

DE VOLTA À TERRA

Tomou o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim para o cultivar e o guardar” (Gn 2.15).

Os dois primeiros capítulos do Gênesis apresentam a história da criação através de uma linguagem ritual e litúrgica. O mundo criado é apresentado como o templo da glória de Deus. Tudo cumpre sua função litúrgica, como o sacerdote dentro do templo. No plano original de Deus, o mundo todo é o teatro para a manifestação da sua glória. Quando captamos as notas do grande hino da criação, chegamos a escutar os estribilhos como respostas litúrgicas a cada ato criador. “E disse Deus”, “E assim foi”, “E foi a tarde e a manhã de um novo dia”, “E viu Deus que era bom”. O momento apoteótico deste grande hino da criação é quando diz: “E viu Deus tudo quanto tinha feito e eis que era tudo muito bom”. Nisto tudo, o ser humano é um espetáculo à parte. Para criar tudo o mais Deus disse: “Faça- se”; mas ao ser humano, não. Tomou-o nas suas mãos. Fê-lo à sua imagem e semelhança, soprou nele o fôlego da vida. O ser humano é o vice regente de Deus. É aquele que, abaixo de Deus, exerce o seu domínio.

Numa realização profética desta determinação, o próprio ser humano se transformou num animal alado que não apenas voa acima das aves e das nuvens, mas cruza o cosmos na conquista do infinito. Mas nunca como agora precisamos quebrar o nosso encantamento e a nossa fascinação pelo espaço. É preciso acordarmos para as tarefas e responsabilidades que nos desafiam em terra. “Por que estais olhando para o céu?” Estas palavras foram dirigidas aos primeiros discípulos no momento em que viam o Senhor ascender às alturas. Essas mesmas palavras parecem nos ser dirigidas novamente neste momento em que, atônitos e perplexos, vemos o ser humano perder-se na imensidão do infinito.

Precisamos acordar da nossa fascinação pelo espaço com tantos desafios e problemas à mão. Ao ser humano, a quem compete o domínio na criação, foi atribuída uma responsabilidade: desenvolver e proteger os recursos de seu lar – a Terra. Na linguagem do Gênesis: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim para o cultivar e o guardar”. Todo ser humano recebe do próprio Deus uma vocação e uma responsabilidade que implica no cuidado com o mundo de sua habitação. É hora de tomarmos a sério o nosso mandato, dando atenção ao nosso mundo. Nós temos estragado tudo aquilo que temos tocado: temos poluído o ar, sujado a água, contaminado nosso alimento, dilapidado nossas riquezas, posto em risco o equilíbrio ecológico. O ser humano, de um modo geral, tem sido indiferente ao seu meio ambiente e somente uns poucos têm tido consciência disto.

Raramente, a este respeito, temos ouvido vozes clamando no deserto. Mas a maior preocupação neste momento é com o fato de que, de modo geral, nós, os cristãos, temos sido, sempre e conscientemente, indiferentes a esta vocação. Teologicamente, o problema pode ser posto nestes termos: nós tendemos a pensar que a vocação cristã nos isenta da necessidade de cumprir a vocação como criaturas. Nós enxergamos uma rivalidade entre a fé e o mundo, entre a graça e a vida. De tal modo isto é verdade que, quando alguém tem uma experiência com Deus e se compromete com Deus, ele se descompromete com o mundo.

No dizer de Joseph Sittler, nós precisamos aprender e compreender que a graça propriamente entendida não repudia o mundo. Ela o transfigura e o redime. Por enquanto, o mundo está posto no maligno e geme com gemidos inexprimíveis. Todavia, mesmo sob o peso do pecado, ele ainda é criação de Deus e teatro da sua glória. É preciso uma mensagem que encoraje o cristão a dar especial atenção à sua casa, que é a Terra. Raramente tenho ouvido um sermão sobre este assunto. Isto advém daquela visão de fé distorcida com relação à vida, segundo a qual ela não tem nada a ver com as necessidades temporais.

Quando perguntado a uma pessoa porque se recusava a participar de determinadas obrigações para com a pátria, respondeu: “Este sistema (o mundo) é como um edifício condenado. Você pintaria e repararia uma casa que o governo vai desapropriar e derrubar?” Esta tem sido a atitude para com o mundo e para com a natureza. Nós esquecemos que este mundo não saiu das mãos de Deus como “um edifício condenado”. Fomos nós que o fizemos assim. E Deus está empenhado na sua reconstrução, mesmo que nós não estejamos, e, por isso mesmo, enviou o seu Filho. Este é o coração do evangelho (Jo 3.16). É claro, e não podemos ignorar, como nos lembra Filipenses 3, que nós somos cidadãos dos céus e que aqui não há nada definitivo. Mas a nossa residência é aqui. E pertence à nossa vocação, como cristãos, zelar e responder pela residência que agora ocupamos. Temos ouvido muito a respeito de nossa responsabilidade para com Deus e para com a igreja. É hora de tomarmos consciência da nossa responsabilidade para com o mundo. O mundo é criado, sustentado e julgado por Deus. Ele é criação de Deus e lhe pertence. E a sua administração nos está confiada.

O mundo é objeto de amor e da preocupação de Deus. Ele enviou seu Filho não para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por Ele. O mundo é a esfera da atividade renovadora e libertadora de Deus. O mundo é o lugar em que Ele se coloca ao nosso lado e partilha nossa sorte. Deus se revelou no êxodo. Ele fez com que o seu propósito fosse realizado através de eventos políticos, sociais, econômicos e militares. O mundo é o lugar próprio para o exercício da vocação cristã. “Pai, eu te peço não que os tires do mundo. É aí que eles devem viver, e aí eles estão em meu nome. Tão somente peço-te que os livres do mal.” A vida cristã não é algo que se realiza em abstrato. Ela tem que se assumir na forma real e concreta dentro e no mundo.

Desde crianças, temos presenciado aquele quadro famoso que nos mostra Jesus do lado de fora da porta, batendo e querendo entrar. O detalhe do quadro é que não existe fechadura do lado de fora da porta. O único modo pelo qual ela pode ser aberta é de dentro para fora. Mas, se lermos o capítulo 45 de Isaías, podemos compreender que, quando não abrimos a porta, Deus a arromba e a derruba. E Deus continua a arrombar as portas que nós teimamos em não abrir. É esta entrada eruptiva, sem perguntar se concordamos ou se estamos prontos, que Deus está levando a cabo em nosso mundo através das revoluções. Há muitas revoluções acontecendo simultaneamente em nosso mundo. Há uma revolução anti-colonial. Há uma revolução científica. Há a revolução pelo fim da discriminação racial. Há uma revolução pela paz. Deus está em todas estas revoluções. Deus está constantemente vindo até nós. Ele está renovando o mundo e quer que sejamos parte integrante neste processo de renovação. Esta é a chamada à evangelização. Este é o convite para sermos cristãos autênticos.

Artur Koestler fala de duas atitudes pelas quais a ação humana se tem feito sentir no mundo: uma é a técnica do místico, do eremita, que se refugia nos mosteiros. Este quietismo e passividade nada conseguirão. Outra atitude é o uso da força e da busca do poder pelo poder. Ela trará sempre o ódio, o fanatismo e a destruição. Precisamos hoje é de profetas. O profeta é a mistura exata do santo e do revolucionário. Para transformar o mundo, estamos precisando da visão da humanidade, da paixão e do poder espiritual do santo aliados ao realismo político e ao envolvimento do revolucionário. Este é o tipo de cristão que o nosso tempo está a exigir.

No filme de Fellini, “A Estrada”, o palhaço diz a uma garota para ficar ao lado do insuportável Zampano. “Se você não o amar, quem mais o fará?” – pergunta o palhaço à garota. Esta é uma parábola do nosso chamado à responsabilidade no mundo. Nós somos desafiados a amar este mundo, a permanecer ao seu lado mesmo que ele nos repugne, a tomar a responsabilidade de renovação. Esta é a responsabilidade que Deus nos assinala e, com ela, nos dará forças para cumpri-la. “E o Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim, para o cultivar e o guardar.”

Rev. Abival Pires da Silveira
Pastor Emérito da 1ª IPI de São Paulo, SP
Falecido no dia 1º/9/2019

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