Identidade Reformada

AS PESSOAS SÃO COMO ESTRADAS

A partir da edição de fevereiro, passamos a publicar, por decisão do Conselho Editorial de O Estandarte, os textos do e-book que se encontra no site da IPI do Brasil, intitulado “A Coragem de Confessar”.


“Antes da criação do mundo, Deus já nos havia escolhido para sermos dele por meio da nossa união com Cristo, a fim de pertencermos somente a Deus e nos apresentarmos diante dele sem culpa” (Ef 1.4).

Você já observou as diferenças entre uma estrada moderna e uma estrada antiga? A estrada moderna costuma não ter curvas muito acentuadas. Com a estrada antiga ocorre exatamente o oposto.

Por que é assim?

A resposta é fácil: antigamente, não havia os recursos técnicos de que dispomos hoje; as estradas, ao serem construídas, tinham de ser desviadas dos obstáculos, ao invés de enfrentá-los; hoje, com a tecnologia, o ser humano constrói estradas que rasgam montanhas e ultrapassam vales em linha reta.

As pessoas são como as estradas antigas ou modernas.

Há pessoas que enfrentam os problemas. Há pessoas que só se desviam deles.

Isso ocorre em muitas situações na nossa vida e na igreja, quando se levantam certos assuntos como, por exemplo, o da predestinação.

São muitas as pessoas que fogem desse assunto e acham que não interessa abordá-lo. São como as estradas antigas, que se desviam dos problemas.

Nossa atitude será outra. O problema existe. Só nos resta, portanto, enfrentá-lo.

É o que faremos, tendo em vista que esse assunto está no terceiro capítulo da Confissão de Fé de Westminster (CFW), que traz o seguinte título: Dos Eternos Decretos de Deus.

O que as pessoas pensam sobre a predestinação?

Qualquer ideia a respeito da predestinação irá se encaixar numa dessas três possibilidades:

1. Deus determina os que serão salvos e os que serão condenados

Este ponto de vista é conhecido como dupla predestinação. Segundo ele, Deus já estabeleceu quais pessoas irão para o céu e quais pessoas irão para o inferno. Em outras palavras, as pessoas não decidem nada. Tudo é decidido por Deus.

É lógico que, no nosso tempo, em que se valoriza muito a democracia, a liberdade, os direitos humanos, etc., a doutrina da dupla predestinação provoca reações contrárias. Ela parece ser um ato ditatorial de um Deus despótico.

2. Deus determina que todas as pessoas serão salvas

Este segundo ponto de vista possui uma semelhança e uma diferença em relação ao anterior.

A diferença é óbvia: todos os seres humanos se salvarão; o amor de Deus dará um jeito e ninguém será condenado eternamente.

A semelhança com o ponto de vista da dupla predestinação é que tudo é decidido por Deus. O que o ser humano faz ou deixa de fazer não tem implicações. O amor de Deus é soberano e Ele salvará a todos.

3. As pessoas decidem sua salvação ou sua condenação

Segundo esta terceira corrente, Deus não decide nada.

O ser humano é livre e responsável. Deus enviou seu Filho para propiciar a salvação de todo aquele que crê. Assim,
cada um decide sua salvação ou condenação. Agora, pense bem! Qualquer ideia sobre o assunto não cairá numa dessas três correntes de interpretação?

A posição da CFW

Diante das três correntes acima, qual é a doutrina da CFW?

Citemos textos da própria CFW:

• “Pelo decreto de Deus e para manifestação da sua própria glória, alguns homens e alguns anjos são predestinados para a vida, e outros preordenados para a morte eterna” (CFW 3.3).

• “Deus, antes que fosse o mundo criado, escolheu em Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida; para o louvor da sua gloriosa graça, ele os escolheu de sua mera e livre graça e amor, e não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condição ou causa” (CFW 3.5).

• “Esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são particular e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode ser nem aumentado nem diminuído” (CFW 3.4).

Diante desses textos da CFW, é fácil perceber que ela aceita a doutrina da dupla predestinação. Aqui, dois pontos
devem ser observados:

  1. A CFW preserva a doutrina da soberania de Deus. E tal doutrina é profundamente bíblica. Leia e discuta em sua classe os seguintes textos: Romanos 8.19-24 e Efésios 1.3-14.
  2. A CFW nega a iniciativa humana. E essa negativa está de acordo com o ensino bíblico a respeito do pecado. De acordo com a Bíblia, o pecado corrompeu totalmente o ser humano. Sob o pecado, o ser humano é totalmente incapaz de fazer o que é bom ou de escolher o bem. Leia Romanos 7.7-25 e discuta com sua classe esse assunto.

Nós e a CFW

Como é que você se sente diante do ensino da CFW?

Como é que os membros de nossas igrejas reagem diante desse ensino? O que tem sido pregado e ensinado em nossas igrejas é aquilo que a CFW ensina e defende?

Certamente, muitos membros da igreja não estão de acordo com o texto da CFW a respeito desse assunto. Para
elas, o texto da CFW apresenta um Deus despótico que age ditatorialmente. Talvez, o ensino e pregação de nossas
igrejas pode ser resumido nos seguintes pontos:

• Deus ama a todos os seres humanos e deseja que todos se salvem;
• Deus enviou Jesus Cristo para morrer por todos;
• O sacrifício de Cristo é suficiente para a salvação de todas as pessoas;
• Aqueles que creem em Jesus Cristo são salvos, e aqueles que não creem estão condenados;
• Crer ou não crer em Jesus como salvador é questão de livre decisão de cada pessoa.

Esses pontos são atraentes nos dias de hoje. Estão mais de acordo com nossas ideias sobre democracia, liberdade
e responsabilidade.

Contudo, temos de admitir que mesmo esses pontos encerram alguns problemas, tais como:

• Eles exigem uma doutrina sobre o pecado que afirme que a queda do ser humano não corrompeu totalmente a capacidade de escolher o que é bom. Em outras palavras, mesmo sob o pecado, as pessoas podem optar, livremente, pela fé em Jesus Cristo.
• A partir do fato de que o ser humano escolhe, livremente, a salvação em Jesus, ele pode apresentar diante de Deus pelo menos um mérito: o de ter crido em Jesus. Isso cria um novo problema: se a fé é decisão humana, o que fazer com o ensino bíblico que diz que a fé é dom de Deus? (Ef 2.8).

Precisamos ser realistas e honestos! Parece que, qualquer que seja a posição adotada, esbarramos sempre em dificuldades e ficamos em becos sem saída.

Tentando concluir

A própria CFW afirma que a doutrina da predestinação é um “alto mistério”, que “deve ser tratada com especial pru-
dência e cuidado” (CFW 3.8).

Tais palavras são muito importantes! Devemos reconhecer que nem sempre temos observado essa orientação. As atitudes mais comuns, diante desse assunto, têm sido a fuga ou a abordagem com superficialidade.

Por isso mesmo, é muito difícil concluir o assunto. Mesmo assim, pelos menos três coisas devem ficar muito claras:

  1. A CFW ensina algo que não tem sido aceito por boa parte da igreja. Devemos ter a coragem de admitir que temos uma doutrina oficial que não é aceita por boa parte da igreja. E isso quer dizer que algo precisa ser feito a respeito do assunto. O primeiro passo a ser dado é a promoção de estudos mais sérios do texto da CFW e das razões de sua posição. Por isso, este texto serve, pelo menos, para que tomemos consciência desse problema.
  2. Ainda que a doutrina da predestinação não agrade a boa parte da igreja, ela apresenta uma certa coerência com textos bíblicos que tratam da doutrina do pecado e da soberania de Deus. Por isso, ela não pode ser simplesmente descartada. Ela merece muito estudo a partir da Bíblia.
  3. Finalmente, devemos ser humildes para nos curvarmos diante dos mistérios da Palavra de Deus. Temos de repetir as expressões usadas por Paulo: “Como são grandes as riquezas de Deus! Como são profundos o seu conhecimento e a sua sabedoria! Quem pode explicar as suas decisões? Quem pode entender os planos?” (Rm 11.33).

Rev. Gerson Correia de Lacerda
Secretário Geral da IPI do Brasil
Pastor-auxiliar da 1ª IPI de Osasco
Editor de O Estandarte

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