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RACISMO EM TEMPO DE PANDEMIA

Neste tempo de pandemia, grande variedade de temas da vida cotidiana nos desafiam como cristãos a tomarmos atitudes pela dignidade humana. Entre esses temas, mencionamos os desafios da economia para ricos e pobres, questões sobre saúde pública, garantia dos direitos humanos para todos, violência urbana, desemprego, racismo.

Chama-nos a atenção o problema do racismo. Este, no passado como na atualidade, tem sido um grande desafio para a humanidade. Entendemos como racismo um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças. Em outras palavras, mais do que isso, é um sistema político que se fundamenta no direito de uma raça considerada pura e superior dominar outras.

O racismo consiste no preconceito e na discriminação com base em percepções sociais baseadas em diferenças biológicas entre os povos, tais como a cor da pele. Ele se manifesta de forma física ou verbal, contra indivíduos, grupo de pessoas ou povos, simplesmente tendo como base a etnia, a raça ou a cor.

Desta forma, o ser humano, direta ou indiretamente, pode ser excluído de determinados direitos ou até mesmo sofrer agressões físicas e/ou verbais de grupos estruturalmente organizados, até mesmo de policiais, como ocorreu recentemente nos Estados Unidos, com a morte de um afro-americano, George Floyd, ex-motorista de caminhão do Exército da Salvação, através de ações brutais em Minneapolis.

Um artigo da Revista Carta Capital, publicado no começo de junho deste ano, afirma que o “Brasil precisou de uma morte fora para reagir ao seu próprio racismo”. O texto faz referência à morte brutal de George Floyd e às fortes reações que apareceram em nosso país, “que lembraram aos brasileiros que, mais do que não ser racista, é preciso ser antirracista”.

Casos Floyd e João Pedro engajam multidões.
Foto: Reprodução Carta Capital

No Brasil, o racismo existe e se manifesta de diversas formas.

Desde o período colonial, desenvolveu-se longa escravização de povos de origem africana. O período de escravidão no Brasil foi cruel, violento, desumano, pecaminoso, apesar de parte da Igreja Católica e protestante ter aderido ao sistema escravocrata. Vários padres, pastores e missionários também tiveram escravos.

A abolição da escravatura foi tardia e irresponsável no Brasil, porque os negros, quando libertos, não foram inseridos dignamente no mercado de trabalho nem em um processo educativo que lhes garantisse vida completa e verdadeiramente livre. Institucionalmente livres, os negros continuaram tendo vida marginal, sendo considerados inferiores e discriminados por preconceitos.

Infelizmente, vivemos sob a teoria do mito da “democracia racial” que foi formulada pelo sociólogo Gilberto Freire, em sua obra “Casa-Grande & Senzala”. Nessa obra, Freire reforçou o mito  de que somos uma democracia racial a ponto de despertar o interesse de pessoas escravizadas em outros países que demonstrarem o desejo de fugir para o Brasil, iludidos pela ideia de que, aqui, negros, brancos, indígenas e outras raças e etnias viviam em paz com direitos iguais.

Na atualidade, “ser negro” no Brasil é uma questão de cor e não de raça, como ocorre nos Estados Unidos. Por isso, o racismo em nossa sociedade alcança a todos de cor negra, através de um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas, mascarado em usos e costumes que, direta ou indiretamente, promove a segregação ou o preconceito contra a pessoa.   

Como cristãos, não podemos ser omissos diante de fatos com manifestações racistas que têm ocorrido no Brasil e no mundo, quando a vida humana tem sido transformada em coisa de pouco ou nenhum valor. Tendo os valores da fé cristã como princípios, vários pioneiros do protestantismo brasileiro se manifestaram contra a escravidão, a maior manifestação de racismo em toda a nossa história.

Citamos o missionário Robert Kalley, da Igreja Evangélica Fluminense, que, de maneira até radical, proferiu em 1865 um sermão dirigido a um membro de sua igreja (Bernardino Rameiro) que se negava a libertar os seus escravos. Como aquele irmão não atendeu à sua exortação, Kalley o expulsou daquela igreja. Em seu trabalho docente nas classes bíblicas destinadas a crianças, Kalley ministrou lições para negros e brancos, ao mesmo tempo, no mesmo espaço.

Citamos ainda o conhecido romancista Júlio Ribeiro que apresentou para o batismo na Igreja Presbiteriana de São Paulo um pequeno escravo (Joaquim), a quem logo concedeu liberdade e, de igual modo, à sua mãe. Foi o primeiro menino escravo batizado, com registro nas atas da Igreja Presbiteriana de São Paulo e que recebeu, juntamente com a sua mãe, Carta de Alforria.

A nossa igreja (IPI do Brasil) tem, na sua história, a atitude do Rev. Eduardo Carlos Pereira que, em 1886, inconformado com o racismo na prática da escravidão dos negros, o denunciou como pecado contra Deus e contra a dignidade humana, ao escrever A religião cristã em suas relações com a escravidão.

Nesse texto, E. C. Pereira critica o sistema escravista como injusto, uma afronta a Deus e ao ser humano, e, profeticamente, apela para os crentes libertarem os seus escravos, ao mesmo tempo em que desafia os pastores de sua época para que não fiquem em silêncio diante desse pecado.

Textualmente ele assim adverte:

“Por que o silêncio medroso ante um crime tão grave? O silêncio do púlpito não é prudência: é infidelidade. Pregue-se o Evangelho… e no dia em que ele plantar-se no coração do senhor (de escravos) cairão por terra as cadeias de seus escravos… “ (sic). Ainda dirigindo-se aos pregadores, Pereira enfatiza: “Nada, pois, de contemporizar ou coparticipação com o pecado social, que assaz tem prejudicado os vitais interesses da religião”. E dirigindo-se aos seus fiéis acrescenta: “Respeita na pessoa do teu escravo a imagem de teu Deus. Não ultrajes o direito inviolável de uma propriedade sagrada” (sic).

Na atualidade, a morte do menino Miguel, em Recife, que caiu de um prédio enquanto estava sob os cuidados da patroa de sua mãe, que cuidava dos cachorros da casa em outro local, está sendo considerado a síntese do racismo brasileiro, levando-se em consideração as relações de trabalho entre patroa e empregada e o descaso nos cuidados de uma criança de 5 anos de idade, como se sua vida não tivesse valor, por ser negra e pobre.

Sociólogos têm visto nesse episódio elementos do racismo (submissão, indiferença e desprezo em relação à vida do outro) presente nas entrelinhas do fato, diante de uma mãe que precisou levar o seu filho para o local de trabalho porque a creche estava fechada. Qualquer que seja a interpretação que se queira dar sobre esse fato e semelhantes, há uma questão a ser respondida: “Que estou fazendo, se sou cristão”?, conforme a letra do hino escrita pelo Rev. João Dias de Araújo.

Que atitudes temos tomado diante da miséria econômica, moral e espiritual que está diante de nós?

Considerando que o racismo, qualquer que seja a sua manifestação, é pecado contra Deus e contra o próximo, somos desafiados a denunciá-lo a todo custo, de maneira profética, ousada: “E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2).

O racismo é pecado porque nos separa do outro que também foi criado “à imagem e semelhança de Deus”. Observemos ainda o texto de Gálatas 3.28: “Não há judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. Por isso, que os nossos compromissos de fé, como cristãos, nos conduzam a atitudes que valorizem a vida humana sob todos os aspectos, a partir de nossa vida em família e em todos os demais segmentos da sociedade humana, para a glória de Deus!   

Rev. Leontino Farias dos Santos
Professor e vice-diretor da Faculdade de Teologia de São Paulo da IPIB (FATIPI)
2º Vice-Presidente da Diretoria da Assembleia Geral da IPIB

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