POR UMA LEITURA INTEGRAL DA BÍBLIA
Abraham Kuyper, teólogo e estadista reformado holandês, proferiu, em 1898, uma sequência de palestras no Seminário de Princeton. Toda temática girou em torno do modo calvinista de vida. Segundo ele, a teologia reformada não focaliza apenas a salvação individual dos eleitos, mas abarca a vida em sua totalidade, apontando para a restauração de toda a criação.
Mas como aplicar o conceito de um Deus soberano a todas as esferas da vida? Acreditamos na Bíblia como bússola para essa tarefa. Para tal, propomos uma leitura integral da Bíblia.
1) Ler a Bíblia para uma real comunhão com Deus
Quando direcionamos nosso olhar ao livro de Gênesis, somos apresentados a um Deus que interage com a criatura humana. Dialoga e até caminha ao seu lado (Gn 3.8,9). Comunhão logo nos primórdios da criação!
Mesmo após a queda, Deus sempre manteve a iniciativa de manter intimidade com a humanidade. Para tal, escolhe um povo e, por meio desse povo, busca restabelecer a proximidade com todos os povos da terra (Gn 12.3).
Eis que Jesus se encarna em um humilde bebê, que cresce e desenvolve seu ministério. Fiel à essência comunitária de Deus, ele não busca realizar seu trabalho de forma solitária. Escolhe 12 discípulos e faz questão de relacionar-se intimamente com eles. Considera-os amigos! (Jo 15.15). Até mesmo quando da realização de seu primeiro milagre, o Senhor fez questão de estar junto com seus seguidores mais próximos (Jo 2.2).
Mas a comunhão de Cristo com seus apóstolos não se restringiu a momentos festivos e miraculosos. No lúgubre Getsêmani, necessitou vivenciar uma proximidade íntima com seus amigos (Mc 14.32-33).
Após esse breve passeio pela história da salvação, fica muito claro que Deus sempre buscou comunhão conosco. Qual seria o nosso papel? A Bíblia nos responde! Ela nos incentiva a louvar a Deus. Cantar a sua glória é uma maneira de se manter em união com o Criador. Também nos ensina a orar, sendo a oração um ato de total entrega e comunhão com Deus. Além disso, a Santa Ceia não deve ser vista apenas como um simples memorial, mas, uma forma espiritual de mantermos comunhão com o corpo e sangue de Jesus, que alimentam nossa fé. Tudo isso está na Bíblia!
2) Ler a Bíblia para cultivar a solidariedade com o próximo
A leitura integral da Bíblia não é algo espiritualizante, mas deve perpassar a maneira como nos relacionamos com outras pessoas. Desde a formação do povo de Israel, nos damos conta de um projeto de coletividade. Na Torá, o conjunto dos primeiros cinco livros que compõe o Antigo Testamento, encontramos leis responsáveis por manter a solidariedade entre os cidadãos. Citamos uma. O livro de Levítico19.9 -10, apresenta a Lei da Respiga, segundo a qual os donos de terras não poderiam se apropriar de toda a produção. De acordo com essa legislação, parte dos frutos da terra deveria ser usufruída por pobres e estrangeiros.
Chegamos ao Novo Testamento. A vida de Jesus nos mostra seu importante papel no restabelecimento da solidariedade entre as pessoas. O Messias veio ao mundo com o propósito de trazer salvação a seres humanos condenados a uma eternidade longe de Deus. É um erro projetar a salvação apenas como algo direcionado ao futuro. Paul Tillich, teólogo luterano alemão, apregoa corretamente que nosso estado natural é de alienação. O ser humano está separado radicalmente de Deus. Essa separação estende-se ao próximo, ao restante da criação e a si mesmo. Entretanto, por meio de Cristo, Deus nos concede a salvação. Tillich define salvação como “cura”: somos curados de forma integral, inclusive em nossos relacionamentos com nosso próximo. Jesus reconfigura de forma radical uma vida que deve ser baseada no serviço e na solidariedade.
Seus milagres não buscavam autopromoção, mas visavam atenuar o sofrimento do próximo e apontar para a essência do Reino de Deus. Por ocasião da segunda multiplicação dos pães (Mt 15.29-39), há dois pontos que demonstram claramente a solidariedade vivenciada por Jesus: a compaixão e a quebra de barreiras étnicas. O verso 32 relata que Jesus sentiu compaixão de uma multidão que não se alimentava há três dias. Há um detalhe que nos passa quase sempre desapercebido. Ao contrário da primeira multiplicação dos pães (Mt 14.13-21), agora Jesus alimenta um grupo composto por 4 mil gentios. A nota explicativa da Bíblia Nova Reforma é bastante elucidativa: “Nos versos 32-39, há o relato da alimentação de 4 mil pessoas. Esse milagre não é a duplicação do anterior, que contou com a presença de 5 mil judeus ao redor do lago. Aqui são 4 mil gentios das redondezas de Decápolis. Nessa sequência, cumpre-se o adágio: primeiro, para os judeus; depois para os gentios”.
Os ensinamentos de Jesus também nos direcionam para uma consciência solidária. Amar o próximo como a si mesmo (Mt 22.39); dar a outra face (Mt 5.39); permitir levar a capa (Mt 5.40); caminhar com alguém por uma longa distância (Mt 5.41); dar e emprestar algo, não esperando o retorno ( Mt 5.42). Tudo isso alicerça o que Moltmann, teólogo reformado alemão, chamou de ” Torá Messiânica”, resumo e renovação da antiga lei com foco no bem comum.
3) Ler a Bíblia para bem cuidar da criação
Há um grande equívoco no cristianismo dominante: a ênfase exagerada concedida à espécie humana. É óbvio que tanto o homem como a mulher refletem a imagem de Deus (Gn 1.26), honra não concedida a nenhum outro ser criado.
A despeito da primazia concedida aos seres humanos, Deus ama e se importa com o restante da criação. É nosso dever manter a integralidade do ecossistema.
Em Gênesis 1.1-25, temos um relato da criação. Homem e mulher não haviam sido criados ainda. Importante é notar que, em cada ato criativo, surge a seguinte sentença: “E viu Deus que tudo era muito bom”. A criação não humana de Deus também foi considerada muito boa.
Dentro do cuidado para com a criação, há um aspecto que muitas vezes passa desapercebido por inúmeros cristãos: o direito dos animais. Pensamos de forma ecológica apenas visando o bem humano. A Bíblia afirma que, independentemente de seu uso por parte do ser humano, Deus ama e se preocupa com os animais. O dilúvio confirma essa premissa. Antes de submergir a terra, o Senhor ordena que Noé construa uma arca. Na arca, além da família de Noé, integrantes de todas as espécies do mundo animal deveriam estar presentes (Gn 6.19.20). Após o dilúvio, é estabelecida uma aliança eterna não somente com os humanos, mas também com os animais (Gn 9.16)!
A preocupação divina com os animais não se restringiu ao dilúvio. Está em toda a Escritura. Encontramos algo muito relevante no escopo dos Dez Mandamentos. Quando Deus determina o dia de sábado como um período de descanso, onde todo trabalho deve ser evitado, esse mandamento, na verdade um direito, se estende aos animais utilizados nos afazeres cotidianos (Ex 20.10). Em um período bem posterior, somos levados à cidade de Nínive. Devido à maldade do povo, a única saída era sua completa destruição. Para evitar um fim tão drástico, Deus envia seu profeta Jonas com a missão de anunciar seu eminente juízo e, assim, mudar a postura daquela iníqua cidade. Diante da insensibilidade de Jonas, o próprio Deus deixa claro que desejava salvar não apenas o povo de Nínive, mas também os animais que lá se encontravam (Jn 4.11).
No Novo Testamento, o próprio Jesus diz que Deus alimenta diretamente as aves (Mt 6.26). Diante de tantos exemplos bíblicos, só nos resta seguir o ensinamento encontrado em Provérbios: “O justo atenta para a vida dos seus animais, mas o coração dos perversos é cruel” (Pv 12.10).
Conclusão
Que a leitura da Bíblia seja o manual para a missão em um mundo tão necessitado. Missão que deve realçar nossa comunhão com Deus, o espírito de solidariedade e o cuidado com a integralidade da criação.
Rev. André Tadeu de Oliveira
Pastor da IPI de Alexânia, GO
Relator do Conselho Editorial de O Estandarte e da revista Vida & Caminho