COMO SEREMOS LEMBRADOS?
A invasão da Ucrânia pela Rússia deflagrou uma guerra que se insculpia já há certo período.
Aliás, devemos lembrar que, por aqueles lados, “as cicatrizes nunca foram realmente fechadas”. A invasão da Ucrânia tem ecos na Guerra Fria, a qual reverbera da 2ª Guerra Mundial, que advém da 1ª Guerra Mundial, e assim se perpetuam os desdobramentos.
Certos acordos não foram realmente aceitos, mas tolerados; certas determinações foram apenas obedecidas por imposição, entre outros tantos motivos.
Questões mal resolvidas não tão hermeticamente fechadas em “barris de pólvora”, sobre os quais comumente se veem fagulhas que estão prontas a atear os estopins.
Ao lermos as notícias, deparamo-nos com um vasto número de tentativas de compreender os motivos que levam o atual presidente da Rússia a não apenas ter invadido a Ucrânia, mas perpetuar seus atos nocivos.
Por que Putin mantém sua ostensiva? Essa me parece ser a principal pergunta que se faz a respeito dessa guerra.
Ademais, nota-se uma comoção com relação à população ucraniana que, infortunadamente, se viu obrigada a fugir do seu próprio país, deixando não somente bens, mas sua história, raízes, familiares.
Talvez, entre os incontáveis problemas e questões sem resposta, um dos piores resultados de uma guerra seja a desumanização.
Algo parecido se iniciou em 1º/9/1939, com o irromper da 2ª Guerra Mundial, um dos capítulos mais nefastos da História Contemporânea.
Não obstante toda a complexidade que envolve um tema tão espinhoso, pretendo voltar meus olhos para o povo cristão que viveu naquele período.
O Partido Nacional-Socialista dos Operários Alemães (NSDAP) apoiava um “cristianismo positivo”, o que em outras palavras significa: as igrejas a serviço do Estado. Naqueles doze anos (1933-1945) do Terceiro Reich, igrejas foram incorporadas pelo Estado com consequente escoamento de suas bases confessionais.
Muitos protestantes se sentiam seguros sob a liderança do Führer, o qual era inclusive aplaudido por alguns pastores. Muitos católicos silenciaram; outros apoiaram Hitler.
O fato é que o nazismo atraiu tanto católicos como protestantes, e muito desse alinhamento se deu em virtude do antissemitismo e da promessa de eliminação dos socialistas e dos comunistas.
Até a ascensão do Führer, em janeiro de 1933, os bispos católicos haviam proibido os fiéis de se filiarem ao NSDAP. Após sua ascensão, eles silenciaram. Em março de 1933, declararam como nulas as advertências iniciais. Em julho do mesmo ano, Hitler negociava com o Vaticano.
As igrejas protestantes, eram ainda mais ativas em apoiar o novo regime. Como escreve Martin N. Dreher:
O espírito nacionalista e reacionário imperante antes de 1933 levou muitos teólogos a considerar que Hitler era o líder pelo qual haviam orado em 1914. Por volta de 1920, muitos desse círculo haviam clamado por uma purificação do cristianismo, exigindo a eliminação da herança judaica. Rejeitavam o Antigo Testamento, destacavam as raízes arianas de Jesus ou afirmavam que o rabino Paulo de Tarso falsificara o Novo Testamento. Mesmo que as autoridades eclesiásticas não acompanhassem tais posicionamentos, não as condenaram com o necessário rigor. Quando lunáticos não são desautorizados, passam a ser normativos.
Naturalmente, os protestantes que pensavam assim foram recebidos de braços abertos pelo partido, e fundaram, em 1932, o Movimento de Fé Teuto-Cristão que, paradoxalmente, unia nazismo e fé cristã, defendendo o racismo e consequente remoção de todas as influências judaicas, bem como se esforçavam para introduzir os princípios do Führer nas suas igrejas.
Felizmente, houve resistência de uma parcela protestante ao Movimento de Fé Teuto-Cristão, desaguando na Liga Emergencial de Pastores, seguida pelo Conselho de Irmãos.
Tais grupos de oposição se aliaram a nomes conhecidos como Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer, este último que foi executado pouco antes do final da guerra, haja vista seu envolvimento em um atentado frustrado a Hitler.
Não podemos deixar de mencionar a Igreja Confessante, que já se opunha aos grupos nacionalista-reacionários mesmo antes da eclosão da guerra, passando a operar na clandestinidade após encetado o confronto.
Dos esforços destes valentes grupos também resultou a Declaração de Barmen, que rejeitava a união entre a fé cristã e o nacional-socialismo, e destacava a exclusividade da revelação das Escrituras Sagradas.
Em síntese, esta propunha dois caminhos: ou se escolhia a Jesus, ou a Hitler.
É certo que a igreja que se opôs ao regime de Hitler foi a organização que ofereceu resistência por maior tempo ao nacional-socialismo.
No entanto, muitas outras – uma provável maioria –, quando não exaltavam ativamente o Führer, preocupavam-se muito mais em não se opor ao regime na tentativa de preservação, não dando caso aos desmandos impetrados pelos nazistas, notadamente com relação ao genocídio que se praticava aos judeus, esquecendo-se do papel profético que deve ter a Igreja de Cristo.
Não há dúvida de que o caminho mais fácil era tentar se aliar ao poder, buscando certa proteção e até mesmo regalias, indiferente do fato de que tais posturas, desumanas, feriam cabalmente os ensinamentos bíblicos.
Quando propomos que existem pontos de contato entre o que aconteceu na 2ª Guerra Mundial e a presente guerra na Europa, fitando os olhos exclusivamente no papel dos cristãos, não é com a pretensão de responder os porquês de Putin ter iniciado o confronto ou de manter suas investidas.
Para quem se declara como seguidor de Jesus Cristo, esta não é a pergunta mais importante a ser feita.
Por motivos distintos daqueles que formaram o Movimento de Fé Teuto-Cristão e apoiaram Hitler, mas sob o mesmo discurso de purificação e defesa da ortodoxia, o patriarca Cirilo, principal líder da Igreja Ortodoxa Russa, deu sua bênção à guerra, endossando as diretivas de Putin.
A invasão da Ucrânia tem como um dos pilares narrativos a defesa dos ideais conservadores e ultranacionalistas da Igreja Ortodoxa Russa, que luta contra um mundo que afirma ser imoral.
Poderíamos esperar que o patriarca russo tivesse condenado o massacre de inocentes ou que, ao menos, tivesse pleiteado um cessar-fogo.
Entretanto, o que aconteceu foi que ele realizou grandes serviços televisionados em Moscou para abençoar as tropas, sugerindo em sermões que a guerra do Kremlin é apenas para o futuro do cristianismo.
A amálgama da religião e Estado se traduz mais uma vez em atos que culminam na devastação de milhares de vidas e histórias, o que é feito de forma supostamente justificada.
Aclara-nos mais uma vez que a igreja, que deveria cumprir seu papel profético, muitas vezes prefere se omitir ou apoiar deliberadamente aqueles que detêm mais poder, visando naturalmente sua preservação e obtenção de benefícios.
É fato que muitos padres e paroquianos da Igreja Ortodoxa Russa não são a favor da postura do seu patriarca, os quais têm rompido com a igreja-mãe.
Por outro lado, também não são poucos os cristãos que concordam e defendem a guerra do Kremlin. E, não nos enganemos, não são apenas os ortodoxos.
Hoje, de forma muito parecida com o que aconteceu naquela década de 1940, podemos pensar em pelo menos três tipos de cristãos:
- os que se aliam ao poder, vendo vantagens na associação da igreja com o Estado;
- os que têm belos discursos de ajudar os refugiados, que externam suas preocupações principalmente nas redes sociais, mas quando realmente têm a oportunidade, pouco (ou nada) fazem com relação a quem têm sofrido os reflexos da guerra;
- e, por fim, quem têm feito algo realmente como Jesus nos ensinou, amando ao próximo, acolhendo o refugiado.
Como a Igreja de Cristo que vive em nossos dias será lembrada daqui a algumas décadas? Como a maior camada cristã da década de 1940 é lembrada ou como aqueles que oraram, amaram e acolheram?
Rev. Alan Daniel Litwin
Pastor do Presbitério do Ipiranga da IPIB, e pastor da Igreja Evangélica Lisbonense Presbiteriana, em Portugal