CAETANO VELOSO GOSPEL
Caetano Veloso cantando música gospel? Como assim, se ele já se identificou como ateu?
Fiquei surpreso diante do fato, ou seja, a passagem do descrente para fazer a interpretação de uma música em estilo, digamos, mais vigoroso. O acontecimento surge com uma música gospel, Caetano cantando “Deus Cuida de Mim”.
Tentando entender as aparentes mudanças de rumo por Caetano Veloso, precisamos ir de encontro às origens gospel, chegadas ao Brasil por via de missionários batistas e presbiterianos. Trata-se de um estilo que interliga solista com vários instrumentos musicais, alguns barulhentos.
A palavra gospel deriva do original em inglês “Good Spell”, numa interpretação literal “Deus soletra”. No começo do século passado, negros cristãos, ou “Negro Spirituals”, solidificaram o estilo, seduzindo celebridades musicais como Bill Halley. Em nosso contexto, a palavra gospel assumiu o sentido de “boas novas”, o epicentro de evangelho.
Caetano parece, agora, como o escritor francês Marcel Proust, querer recuperar o tempo perdido – melhor dizendo, a religiosidade perdida.
A letra de “Deus Cuida de Mim” foi escrita por um pastor batista, Kleber Lucas, que já ganhou o significativo prêmio Grammy, melhor álbum de música cristã em português.
A ortodoxa posição de “não creio”, substituída por “sim, creio”, nasceu quando Caetano ouviu dedilhada ao violão a música que o encantaria, durante um jantar com ele e Paula Lavigne. Antes da aparente transformação, Caetano cantou a música chamada “Milagres do Povo”, que contém muitas referências a religiões afro que, em certo trecho, diz que “quem é ateu e viu milagres como eu/sabe que os deuses sem Deus/não cessam de brotar, nem cansam de esperar”.
A letra tem a sua razão de ser, coincidindo com nossos princípios cristãos, pois cremos em Deus único e verdadeiro, bondoso em nos propiciar a vinda de seu Filho. Os “deuses sem Deus”, na canção de Caetano, sugere Friedrich Nitzsche, filósofo alemão, ao escrever a metáfora “Deus está morto”, explorando a tese na crença do “inacreditável” ao se referir aos incapazes de explicar o fenômeno do Cosmos, mas concluindo que é melhor acreditar num mundo com Deus do que sem Deus.
Esclarecidos esses pontos vitais, percebemos que a música gospel não tem muito espaço no mercado, embora possua grande audiência em circuito fechado. Caetano disse, respondendo pergunta sobre seu antes e depois: “Acho que foi Deus”.
A mudança no andar com Deus é questão que somente Caetano poderia explicar. O que ele dá a entender é que muitos dos que não apreciam a música gospel não devem rejeitá-la por completo. Segundo ele, esse pouco caso iria contra os sentimentos de pobres e pretos, predominantes em certos grupos religiosos. O estilo só perde em vendas para as músicas sertanejas.
Os estilos
Em matéria de formatos diferenciados de expressão, é necessário pensar que mistérios divinos são impossíveis pela descrição humana. É incontornável o limite intelectual sobre Criador e criatura. Há tempos, há costumes, há conhecimento, há ciência, há mentalidades transitórias, há mutantes. O cristianismo na essência é corporificado em Jesus, porém universal – “Ide por todo o mundo pregar o evangelho”. Contra as deturpações, somos protestantes por natureza.
Podemos interpretar Caetano cantando, poderíamos combinar entre René Descartes, filósofo e matemático francês, (“penso, logo existo”) com “existo e cuido de mim”. Para raciocinar assim, teríamos que ter um pouco de boa vontade, aquela que os anjos anunciaram, num coral magnífico: a boa notícia é endereçada às pessoas de boa vontade. Precisamos dessa boa vontade para digerir Caetano. Os deuses com grifes de ouro, estes sim, estão mortos. Deus cuida de mim, é claro, mas cuida também no plural, cuida de nós. O sistema dominante é sedutor e cruel. Precisamos, todos, dos cuidados divinos.
Caetano canta poesia com “eu cuido de mim”. E lembremos que a poesia é a alma da literatura. E ela é como definiu o romancista americano William Faukner: faz o mesmo que acender um fósforo no meio da noite. “Um fósforo ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor”.
Amar ao próximo como a ti mesmo… Cuidar de mim… fazer a tessitura de uma rede para cuidar não só de mim, mas dos outros… ouvidos para ouvir a voz do Senhor, que por vezes nos fala suavemente.
Podemos ter a percepção em sentir a presença de Deus de variadas maneiras e louvá-lo com diversidade de estilos, a forma mais estridente, ou a suavidade sacra dos nossos belos corais, órgão e pianos… Existem vozes sonoras e clamores sussurrados… O importante é que tais variações possam agradar ao Senhor…
Houve tempos em que igrejas usavam alto-falantes para atingir pontos mais distantes das paróquias e até hoje existem (muitos) que, ao pregar, usam forte tom de voz. Parece ser correto interpretar que camadas sociais mais humildes prefiram esse jeito em suas comunidades de fé.
Nosso Deus é o mesmo e o mais importante é agradá-lo. Este é o objetivo fundamental do louvor. Em música, a voz humana deve ser a mais valorizada, coisa que nossos corais sabem fazer muito bem. A expressão de cada estilo é variável, podemos gostar mais ou menos de uma apresentação. Há cantos eruditos, como os gregorianos e, ao mesmo tempo, há os que atraem muito mais gente e agradam aos frequentadores. Há lugares em que tudo mais alto atrai mais aos jovens, até guitarras e baterias ficam nos altares, e lá permanecem durante todo o tempo de duração um culto.
O que move um ser humano a frequentar este ou aquele lugar? Certamente a busca de algo que reconforte, um espaço de paz, refúgio e até mesmo fuga. Esses viventes querem sentir-se melhores. Estar num lugar saudável que apreciem. Teologicamente, seria possível dizer que desejam renovar o ânimo. Nascer de novo.
Ossos secos
Na criação do ser humano, o Senhor soprou nas suas narinas o fôlego da vida, transformando-o em alma vivente. Algo que se liga com a impressionante visão de Ezequiel no vale dos ossos secos, ressequidos e amontoados, até que por meio do Espírito voltaram a viver. Nova vida para os ossos.
Na nossa vida, também existem os mortos-vivos, reduzidos a ossos, como se estivessem à espera por um sopro. Esse sopro animou e anima a nossa alma. Condição sem a qual não vivemos, ficamos como ossos secos.
O sopro divino pode nos chegar de várias maneiras. As culturas mutantes de muitos países demonstram exatamente isso. No centro de Salvador, Bahia, por exemplo, existe uma praça central que se chama “Terreiro de Jesus”. Esse nome pode nos surpreender, mas é bastante comum entre seguidores da religião afro.
Ossos secos hoje podem identificar que o ser humano é o lobo do ser humano, na afirmativa do inglês Thomas Hobbes. Na sua obra Leviatã, ele diz que o ser humano é capaz de cometer atrocidades e barbaridades até contra elementos da própria espécie. Ciência e tecnologia avançam, mas são incapazes de criar harmonia relacionada ao progresso espiritual, equilibrando ações que possam consolidar um senso moral, individual e coletivo, para atingir um ponto mais elevado de vivência.
Somos seres viventes. Nessa condição, somos fonte da criação regente do universo de ode brota toda energia e potência. Que fonte é esta? Deus.
Os ossos secos são a proveta do lobo de si mesmo. Precisamos saber separar a luz das trevas, ativando as forças da alma. Eu cuido de mim, podemos cantar, desde que a caridade e o amor, sentimentos e práticas, sejam reconhecidos por nós e pelos semelhantes.
Religião é religar a criatura cm o Criador. Podemos cantar. Falar. Sussurrar. Sermos introspetivos. Falar alto. Falar baixo. Fechar os olhos. Mantê-los abertos. Olhar em silêncio, com o pensamento. Procurar expressar em palavras os nossos sentimentos. Pensar no que é de César, aquilo onde a política partidária representa os ossos secos em forma de vergonhosa sordidez.
Percival de Souza
Jornalista e Escritor
Membro da 1ª IPI de São Paulo, SP