JESUS, O CRISTO: DO CANCELAMENTO NA SINAGOGA À MORTE NA CRUZ
“Pra ser humano como foi Jesus, só mesmo sendo Deus” (Leonardo Boff).
Foi o teólogo Karl Barth, depois do apóstolo Paulo, quem melhor captou a mensagem da Cruz quando afirmou que a Cruz é cronologicamente humana e kairoticamente divina.
Com próxima similaridade ao conceito de Ser e Tempo, utilizado por seu colega Martin Heidegger, Karl Barth lançou mão do dialético binômio: Criação e Pacto.
O objetivo da criação é a história, pois, é nela que Deus decididamente age e revela a si mesmo. Mas, se a criação de Deus se dá na história, isto significa que acontece em um tempo. O tempo, em contraposição à eternidade, é a forma de existência da criatura.
Entretanto, eternidade não é meramente a negação do tempo. Ao contrário, a eternidade é a fonte do tempo absoluto e supremo, isto é, a unidade imediata do presente, do passado e do futuro.
Nesta forma, a eternidade é a essência do próprio Deus; nesta forma Deus é a própria eternidade. Deus é temporal precisamente à medida que Ele é eterno, e sua eternidade é o protótipo do tempo. Como eterno ele está simultaneamente antes do tempo, acima do tempo e depois do tempo.
É exatamente essa dialética imaginação que inspirou Karl Barth a afirmar que a cruz de Cristo é antes do tempo, no tempo e fora do tempo.
Sim, para Karl Barth a Cruz de Cristo deve ser compreendida por meio da teologia do pacto que ele chamou de Ad Intra, isto é, pacto trinitário antes mesmo da criação. Assim, Deus é redentor mesmo antes de ser criador.
Para Karl Barth, a Cruz já estava no coração da santíssima Trindade mesmo antes da criação. Neste mesmo pacto, a santíssima Trindade é também Ad Extra, pois com a criação ela se manifesta, se humaniza em Jesus e nos une na plenitude de sua comunhão.
Além de antes do tempo, a Cruz também se mostrou no tempo cronos, espaço onde os seres humanos promoviam, promovem e continuarão promovendo os horrores da maldade, como no ato de crucificar e, mais recentemente, cancelar seus algozes.
Foi na cronologia desse tempo que a Trindade se manifestou kairoticamente em Jesus de Nazaré. No tempo kairós, Jesus, o Cristo de Deus, participou do pacto redentivo que o outorgou a vencer sua última tentação, aquela mesma sofrida no Getsêmani, ao dizer por três vezes: “Passa de mim este cálice; contudo, seja feita sua vontade”.
Além de antes do tempo, bem como no tempo, a Cruz também é fora do tempo. Sim, a Cruz é fora do tempo em razão de que, na eternidade escatológica, a santíssima Trindade será tudo em todos.
A Trindade será tudo em todos porque nada escapa aos olhos, propósito e alcance de sua plenitude; será sobre todos porque nenhum ser humano do passado, do presente e do futuro ficará alheio à última cidade da Cruz.
Aos filhos e filhas eleitos será dado o privilégio de contemplarem na eternidade a glória de Deus. Quanto aos não eleitos será dada a condição de viverem o caos da glória de Deus. Segundo Karl Barth, o caos nada mais é senão as costas de Deus. Numa linguagem mítica, caos equivale ao inferno, reservado ao Diabo e seus agentes crucificadores e canceladores do passado, do presente e do futuro.
Após compreendermos teologicamente o lugar e o tempo da Cruz, precisamos compreender teologicamente o sentido da Cruz.
Se, para Karl Barth, a Cruz está no pacto Ad Intra antes do tempo e Ad extra manifesto no tempo, para Paul Tillich, a Cruz não é a causa, mas a manifestação efetiva do Cristo que assume as consequências da culpa humana em si mesmo.
Para Paul Tillich, é exatamente o sentido de “tornar-se” manifesto que fundamenta teologicamente tanto a unidade trinitária quanto o domínio da trilogia dos tempos passado, presente e futuro.
Nesse sentido, podemos dizer que Barth e Tillich estão em harmonia quanto à concepção teológica de que Deus é antes do tempo (kairós), no tempo (cronos) e fora do tempo (Ultimacidade). Lembrando que o termo atribuído a Deus pressupõe a atribuição do sentido ao Ser de Deus.
Sua manifestação como Cristo transcende a limitada ideia do tornar-se conhecido, mostrando-se no tempo cronológico da história humana.
Nesse sentido, Jesus é a manifestação plena da infinitude divina na finitude humana. Para Paul Tillich, é por esta razão que a Cruz de Cristo não é a causa (finita e cronológica), mas antes é a manifestação da eternidade antes do tempo (infinita e kairótica) que atualiza (une) o passado, o presente e o futuro.
Assim, a consciência culpada que olha para a Cruz e vê o ato expiatório de Deus em e através dela, experimenta o estado de ser possuído pela Presença Espiritual que produz vida sem ambiguidade, portanto, portadora da dinâmica da fé que a conduz aos meios da graça do Cristo de Deus.
Eis a razão de a Cruz ser a consequência do Pacto trinitário e não antes a causa do bem-sucedido jogo religioso da elite judaica que convenceu Roma a crucificar Jesus.
Finalmente, precisamos compreender teologicamente o lugar da Cruz na sinagoga e na igreja. Nos três primeiros Evangelhos, encontramos uma sequência de cenas que detalham com exatidão perfeita a mensagem da Cruz.
Como vimos anteriormente, o sentido redentivo da Cruz vai muito além do sentido da crucificação. Considerando que o sentido da Cruz está na eternidade atemporal. Então, passamos a ler o ministério de Jesus, o Cristo em caráter revelacional, por meio do Advento, da Epifania e da Parusia.
Esta condição de eternidade atemporal é imprescindível para interpretar os desdobramentos dos conflitos que desencadearam na implacável perseguição a Jesus por parte das autoridades sacerdotais do judaísmo oficial.
Há uma sequência de três cenas iniciais nos Evangelhos que apontam diretamente para a trilogia do tempo que temos adotado até aqui.
A primeira cena é a da encarnação de Jesus por meio da concepção de Maria que representa a irrupção da eternidade infinita (kairós) no tempo finito (cronos) que manifesta o pacto da graça redentiva.
A segunda cena é a do batismo de Jesus que representa tanto a teologia da justiça substitutiva – que Jesus se fez pecador em nosso lugar – quanto o fim da antiga aliança judaica, pois Jesus é o fim da Lei e, simultaneamente, é o portador do Espírito Santo recebido ao sair da água pós batismo, habilitando-o ao tríplice ofício de Messias (Cristo-ungido), Sacerdote (Expiação completa e irrepetível) e Rei (Soberano sobre todos, incluindo as forças espirituais).
A terceira cena é a do anúncio da Boa Nova que dá início ao Reino de Deus sobre este mundo. O momento emblemático desta terceira cena chama a atenção porque acontece exatamente dentro da sinagoga; tanto na sinagoga quanto no templo de Jerusalém, Jesus deixou sinais de seu triplo ofício como Messias, Sacerdote e Rei.
Se, no início do ministério de Jesus, temos a cena de quando foi numa sinagoga (Lc 4.16-19) para anunciar a Boa Nova como sinal da chegada do Reino de Deus, sendo dela expulso, no final de seu ministério, temos a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, sobretudo no templo, para anunciar que aquele sistema judaico de expiação estava sendo encerrado por Deus.
Como sabemos, Jesus saiu do templo para, na mesma semana, ser crucificado. Portanto, os mesmos poderosos que, no passado, o crucificaram hoje o cancelam. Naquele tempo, descreveram a Jesus como blasfemo, belzebu, beberrão, comilão, amigo de corruptos e prostitutas. Hoje, usam termos exóticos tais como comunistas, feministas, marxistas, liberais e amigos de gays. Contudo, segundo a lógica teológica desta reflexão, esses poderosos são úteis no Reino de Deus: no final, eles verão a diferença entre quem serve a Deus e quem serve às estruturas de poder da trilogia Sinagoga-Templo-Igreja. Para estes é reservado escatologicamente o Caos (as costas de Deus); para aqueles outros, a dádiva da glória celestial (face a face com Deus). Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!
Rev. Adilson de Souza FilhoI
Pastor da 1a IPI de Mauá, SP