Vida Prática

A CRISE DO CONFRONTO COM A DOR E A MORTE COMO OPORTUNIDADE DE EVANGELIZAÇÃO

Milhares de pessoas estão internadas em algum hospital, sofrendo horrorosamente, sozinhas, necessitando que alguém lhes traga uma palavra de conforto e, principalmente, uma palavra de salvação. E, para tristeza geral, a maioria absoluta, jamais terá esta oportunidade e sem uma segunda chance.

A UMHE (União Médica Hospitalar Evangélica), antiga entidade leiga que congregava os cristãos para conforto mútuo, melhoria do serviço e evangelização dentro dos hospitais, tinha um lema extraordinário: “Passam mais pessoas pelos hospitais do mundo do que pelas igrejas”.

Isto é uma grande realidade. Ao acrescentarmos o número de funcionários e familiares, fornecedores, etc., o hospital é, hoje, uma encruzilhada da sociedade.

Como são raríssimos os casos em que os hospitais, apesar de reconhecerem o valor do atendimento espiritual ao paciente, se propõem a remunerar um profissional da área, resta a este se oferecer para trabalhar de forma voluntária, mas nem todos têm condição financeira para isto. Assim as visitas pastorais se limitam aos conhecidos ou aos membros da igreja, o que significa o atendimento a muito menos de 0,1% dos internados.

As igrejas remuneram os ministros que assumem o pastorado tradicional. Valeria a pena também remunerar os que demonstrassem vocação e preparo para o atendimento hospitalar. Tenho certeza de que os dirigentes dos hospitais ficariam muito felizes em receber profissionais preparados.

Philipe Maury, no livro “Evangelização e Política”, chama a nossa atenção para esta realidade: “Uma igreja que cessa de evangelizar é, não só infiel ao seu Senhor, mas, na realidade, deixa de ser Igreja de Jesus Cristo. Uma igreja, por ex., que achasse em si mesma o objeto de sua missão, … não seria apenas um escândalo, mas condenar-se-ia a si mesmo à morte”.

Existindo, no entanto, várias maneiras para esta execução, proponho-me a falar sobre uma delas: a evangelização como Humanização, isto é, fazer o ser humano sentir-se realmente ser humano e não apenas um objeto.

Cristo evangelizou humanizando e humanizou evangelizando. A Bíblia nos garante isto: “Ide e contai a João Batista o que vistes e ouvistes: os cegos veem, os surdos ouvem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os mortos ressuscitam, e aos pobres está sendo pregado o evangelho” (Mt 11.5).

Jesus atendia o povo de forma completa. Daí a importância de investirmos na evangelização dos internados nos hospitais.

Maria Luiza Ruckert nos esclarece: “Em Alexandria (100 a.C.-100 d.C.), os primeiros terapeutas do deserto perceberam e ensinaram que o adoecimento e o sofrimento acontecem na integralidade da pessoa, uma unidade corpórea e anímica. Não se deveria tratar só do corpo; a alma exige ser escutada”.

Nascemos com determinadas necessidades. Outras vão sendo adquiridas ao longo do tempo. Hoje experimentamos mil necessidades de conforto desconhecidas dos nossos antepassados

E, no nosso caso específico, podemos falar da necessidade da presença física, que é o que o paciente reclama.

Isto é tão importante que, num estudo denominado “O Imperativo dos Samaritanos”, Michael J. Christensen cita Jessie Lee que diz: “O propósito da visita é oferecer um ‘Ministério de Presença’, que restaura o poder dos pacientes. Eles se sentem como se tivessem perdido o controle de suas vidas. Quero ajudá-los a recuperar seu poder e dignidade como pessoas à imagem de Deus”.  

Poderíamos atendê-los à distância com correntes e mais correntes de oração, mas o importante é estarmos perto, juntos, mesmo sem falar.

O apóstolo Paulo demonstrou esta carência quando reclamou: “Por favor, lembrem-se de que eu estou preso…” (Cl 4.18).

Demonstrou também a falta que lhe faziam os amigos quando diz a Timóteo: “Venha me ver logo que puder… Só Lucas está comigo… Na minha primeira defesa, ninguém apareceu para me apoiar; todos me abandonaram” (2Tm 4.9-11)

O próprio Jesus, no Getsêmani, ao verificar os discípulos dormindo, disse: “Nem por uma hora vocês puderam vigiar comigo?”

Deus se utiliza das pessoas para estabelecer sua presença que vem no momento certo para uma palavra de conforto, para a resposta a uma indagação perturbante, para o direcionamento a um caminho seguro ou até para uma reprimenda necessária.

Muitas vezes, após horas de comunhão com Deus em oração, só sentimos sua presença no encontro com algum amigo que, com um simples abraço ou uma palavra, faz-nos crer que a experiência com Deus é verdadeira.

Deus se utiliza de nós para que os outros se sintam em companhia, o que me fez lembrar da história da menina que não queria dormir em seu quarto, insistindo que a mãe ficasse por perto. A mãe, cansada, insistia que ela não precisava ter medo e colocou em seu colo o brinquedo de que ela mais gostava, um ursinho de pelúcia, e dizia: “Durma abraçada com ele”.

Por alguns instantes parecia que tudo estava bem, mas, passados alguns minutos, o choro. Nesta altura, a mãe, cristã, lhe falou com muito carinho: “Minha filha, não tenha medo, Deus está aqui com você!”; ao que ela respondeu: “Ah! Mamãe, quero alguém de pele para que eu possa abraçar”. A mãe entendeu.

Um senhor estava na unidade coronariana havia uns 5 dias, mas sempre dormindo. Numa das minhas visitas, ele abriu os olhos e eu fui até ele. Bastou que me apresentasse para que, imediatamente, pegasse na minha mão dizendo: “Até que enfim, um irmão em Cristo. Eu já estava desesperado de tanto abandono. Ore por mim, pastor!”

Não que ele estivesse abandonado, pois neste setor o tratamento é diferenciado; médicos e enfermeiros cuidam 24 horas do conforto do paciente. Mas ele se sentia abandonado no meio daquela multidão e da tecnologia. Senti o valor da presença valorizando a visita que a gente faz sem a certeza de que o paciente está interessado nela.

Uma cena triste, comovente, mas profundamente linda ilustra esta realidade. Um senhor bem idoso, de uma tradicional família de Londrina, estava na UTI, em coma, sem condições de contato, para morrer a qualquer momento.

A família me consultou da possibilidade da esposa, bem velhinha, pudesse vê-lo, ainda que por um pouco. Admirei-me de que ela não tivesse tido a possibilidade de visitá-lo diariamente.

A família entendia que seria sofrimento para ela ver o esposo naquele estado. Pediu-me que a acompanhasse. Senti que ali não iria acontecer uma simples visita. Ela, sem enxergar quase nada, foi sendo conduzida, mas senti, pela sua respiração e pelas frases que dizia, que alguma coisa de extraordinário estava para acontecer.

Chegou diante dele, todo entubado, sem poder falar e, de início, beijou-lhe a testa dizendo: “Filhinho, eu agora estou aqui junto de você” e outras frases de amor que poucos namorados são capazes de dizer.

Só quem estava por perto foi capaz de ver o rosto do ancião que, até minutos atrás, era apagado, feio, parecido com a morte, agora brilhando, com lágrimas de alegria nos olhos.

Ele, que não era capaz de entender nada do que lhe diziam (ou não se interessava em saber), demonstrou vivenciar aquele carinho da esposa que, no fim, numa franqueza estonteante, concluiu: “Meu amor, agora você já pode morrer em paz”.

Despediu-se dele, e, virando-se para mim, me deu um abraço apertado, agradecendo por ter tido esta oportunidade, pedindo para sair. O paciente foi a óbito quinze minutos depois. Saímos da UTI chorando.

Rev. Gerson Moraes de Araújo
Ministro jubilado da IPIB e capelão do Hospital Evangélico de Londrina, PR

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