UMA DUPLA VOCAÇÃO
Uma grande preocupação que nos acompanha desde o berço é a questão do objetivo da vida. Para que vivemos? Para onde vamos? No contexto da igreja, não poderia ser diferente. Apenas aplicamos uma estrutura de pensamento e um vocabulário mais adequados à vida cristã. Em vez de questionarmos a razão da existência, buscamos descobrir a nossa vocação no mundo e na igreja.
Como é bem conhecido, a palavra vocação tem origem no verbo latino “vocare”, que significa chamar. A própria origem da palavra já contém um elemento semântico que, de certa forma, conduz as nossas conclusões sobre esse ponto. Quando pensamos em vocação na forma de um chamado, imediatamente somos levados a pensar em alguém que chama e alguém que é chamado. Logo surgem as primeiras perguntas: quem chama e quem é chamado? À primeira pergunta, a resposta é relativamente simples para nós, cristãos: é Deus quem chama. Já, na segunda pergunta, deparamo-nos com o dilema de definir o objeto do chamado de Deus. Todos seriam chamados ou somente um grupo especial de pessoas, normalmente composto por aqueles que desempenham funções na igreja, tais como pastores, missionários, presbíteros e diáconos? Os mais generosos incluiriam também os professores de Escola Dominical, os líderes de departamento e mais algumas categorias de obreiros.
Vejo dois desafios nessa breve reflexão: ampliar a aplicação do termo vocação para além das paredes da igreja e propor que esse chamado se aplica a todas as pessoas. Além disso, entendo que há duas categorias essenciais de chamado: uma positiva e uma negativa.
Ao desassociarmos a questão da vocação de uma realidade estritamente eclesiástica, podemos conceber o chamado de Deus como algo mais abrangente e natural do que costumamos imaginar. Muitos pensadores cristãos contemporâneos têm insistido no fato de que o chamado de Deus para a nossa vida está intimamente ligado às inclinações e habilidades naturais de cada pessoa.
Normalmente essas habilidades se expressam tanto no contexto da igreja quanto no contexto secular, se é que podemos fazer tal separação. É comum observarmos pessoas que descobrem o dom de ensinar ou de administrar na igreja e que, posteriormente, encontram espaço para aplicá-lo em outros âmbitos da vida, como na área profissional. O inverso também pode ocorrer, quando alguns trazem para a comunidade cristã habilidades antes desenvolvidas em atividades seculares. Se considerarmos a questão por essa perspectiva, passamos a compreender que a pergunta nunca deveria ser “qual é o meu dom e a minha vocação?”, mas sim, “como posso servir a Deus na igreja e no mundo com as inclinações e habilidades que Deus me tem concedido?”. A partir do que consideramos até aqui, já podemos extrair duas conclusões importantes. Em primeiro lugar, a essência da vocação não é o ser, mas o servir. Em segundo lugar, no sentido amplo da palavra, todo ser humano, cristão ou não, tem um chamado específico, o qual é determinado por Deus a partir de dons e inclinações naturais que herdamos ou adquirimos durante a vida.
Em relação à dupla natureza da vocação, gostaria de construir um paralelo com a narrativa do Gênesis sobre a criação do ser humano. Ao criar o homem e a mulher, Deus o fez em uma realidade composta por um chamado positivo e um negativo. A vocação positiva se dava por meio de um conjunto de ações que deveriam configurar a vida humana. Esse conjunto foi expresso em injunções divinas como “faça”, “nomeie”, “cultive”, “seja”. Trata-se de um chamado eterno de Deus para toda a raça humana. Por outro lado, houve também uma ordem negativa de Deus para que o homem e a mulher não tocassem em uma certa árvore do jardim do Éden e que não comessem do seu fruto. Essa ordem negativa de Deus no Éden se estende a todos os estados de alma e a todas as ações que distanciam o ser humano do alvo de santidade estabelecido por Deus. Assim como Adão e Eva tiveram um “fruto proibido” a evitar, nós também temos um chamado de Deus para nos afastarmos dos “frutos” da iniquidade, da incredulidade e da falta de amor. A vocação negativa é tão real e imperiosa quanto a positiva, aplicando-se igualmente a toda a humanidade.
Para concluir, gostaria de destacar o caráter eminentemente natural da vocação. Na eternidade, Deus definiu as características e inclinações do nosso ser. Em alguns casos, Deus pode até chamar alguém de forma sobrenatural para uma obra específica, mas, via de regra, esse chamado se dá gradualmente na consciência e nas aptidões naturais de cada pessoa. No crente, o Espírito Santo molda esses dons e adiciona outros de acordo com as necessidades da igreja e da sociedade, porém sem nunca violentar a vontade e a determinação humana.
Se você chegou a este ponto da leitura e continua com dúvidas acerca da sua vocação, gostaria de sugerir as seguintes perguntas para que você se faça: O que gosto de fazer? Quais são as minhas inclinações naturais? O que preciso fazer para alcançar a excelência no que faço? Como posso servir o mundo e a igreja com esses dons que Deus me deu? Que atos ou atitudes preciso evitar para manter-me santo e glorificar a Deus em tudo o que faço? Para encerrar, recomendo a leitura bíblica de Efésios 4 e 1 Coríntios 12, além do livro “Uma vida com propósito”, da autoria de Rick Warren.
José Ricardo Cano
Membro da 1ª IPI de São Paulo, SP