PELAS LENTES DE UM NEGRO
“Prantos de sangue – vagas escarlates –
Toldam teus rios – lúbricos Euphrates –
Dos servos de Sião.
E as palmeiras se torcem torturadas,
Quando escutam dos morros nas quebradas.”
(Castro Alves, Os escravos – O grito de aflição. Recife, PE, 18/7/1865)
Toda forma de escravidão é, na essência, um processo de desumanização. Nesse sentido, a luta contra todas as formas de opressão, subjugação, escravidão, entre outras, é inerente àqueles que vivem o Evangelho de Cristo.
É lindo o poema daquele que se notabilizou pelo “Navio Negreiro”. A combinação e a analogia construída com Sião e o Eufrates alude à sensibilidade de um Deus que resgata seu povo, constituindo uma nova esperança, uma nova utopia. Na caminhada de volta para casa, o refazer do pensar, o refazer dos princípios, o esperançar de Deus na vida daqueles que passaram pela desumanização da escravidão.
Olhar para as ações de Deus no resgate da humanidade de seu povo é assumir o papel de povo dele na consecução do plano de instaurar a nova humanidade apresentada em Jesus na sua encarnação, e revelada na cena restauradora do batismo no Jordão.
Nasceu, ali, a nova humanidade que se revelaria no olhar que não fazia acepção de pessoas; no olhar que aconchegava; no olhar que gerava paz.
Nascia, emergindo das águas do Jordão, as mãos que tocariam os leprosos; as mãos que restaurariam a vista dos cegos; as mãos que tocariam em esquifes; as mãos que seriam espalmadas em uma madeira e seguras por pregos para gerar vida; as mãos que combateriam o processo da desumanização, perpetrado pelas diversas formas de escravidão.
Sendo assim, faço um convite: olhemos pelos olhos daqueles que são impedidos de usar os elevadores sociais dos condomínios, juntemo-nos às vozes daqueles que clamam por justiça, visando a punição àqueles que asfixiaram um cidadão, numa ação cruel, provavelmente por ter uma preconcepção de que vidas negras não importam.
O “camburão” foi transformado numa câmara de gás nazista. Não importava! Ali não havia um ser humano!
Ergamos nossos braços por aqueles que, habitando em favelas, são tidos como marginais. Defendamos todos esses que são desumanizados em um processo contínuo de dor, sofrimento e morte.
Andemos, andemos, marchemos nas vias públicas a anunciar que as mãos espalmadas de Cristo no madeiro foram por todos.
Denunciemos o quanto é fétido o cheiro da hipocrisia que continua a ressoar em nosso tecido social, deixando crianças pretas morrerem enquanto descem em elevadores de condomínios de luxo.
Andemos e denunciemos as “balas que continuam a ser perdidas” nas casas dos mais pobres que, não à toa, são negros.
Choremos com as mães que, repetidas vezes, voltam aos cemitérios a enterrar seus filhos que não tiveram a chance de uma vida humanizada por serem negros, e estarem previamente destituídos das possibilidades.
Oremos a Deus para tirar de nós o coração de pedra e ir na direção daqueles que vivem nas ruas a passar fome, pois a escravidão da fome avilta a Deus.
Recitemos os poemas de Castro Alves, leiamos os escritos de Eduardo Carlos Pereira; olhemos o novo ser anunciado e vivido por Jesus Cristo e nos apresentemos como o lugar de consolo, de justiça, de paz e de amor.
Só venceremos a luta contra a desumanização trazida pelas diversas formas de racismo e preconceitos, quando deixarmos o humano novo nascer ouvindo as palavras do nosso Pai: “Esse é o meu filho amado, em quem eu tenho prazer!”
Rev. Neilton Diniz
Pastor da IPIB, sociólogo e presidente do Sínodo Setentrional