PATRIARCA OU PATRIARCADO?
Vivemos uma época em que algumas palavras outrora restritas a um pequeno círculo de eruditos passaram a ser utilizadas pela população em geral. Todos se fazem facilmente de “entendidos” de todo e qualquer assunto.
Vocábulos como “femismo”, “idadismo”, “misoginia” e outros fazem parte do discurso comum em redes sociais e nas ruas, na maioria das vezes totalmente descontextualizados de seu verdadeiro significado.
É claro que o mundo evangélico não ficou imune a esta invasão vocabular. Entre estes jargões popularizados quero destacar o termo “Patriarcado”.
A palavra “Patriarcado” adquiriu ultimamente o sentido extraído do discurso feminista, que o define como “um sistema ideológico em que os homens são inerentemente dominantes ou superiores às mulheres” (Bell Hooks).
Daí se extravasa para uma aplicação errônea à Bíblia, apontada por muitos como um texto nascido em uma sociedade patriarcal e, portanto, que privilegia a figura masculina em detrimento da feminina.
Como o livro de Gênesis traz a história dos patriarcas parece natural, para muitos, que houvesse um patriarcado institucionalizado nos primórdios do povo de Israel.
Mas será mesmo isto verdade?
Não! O fato de existirem patriarcas não significa que esta seja uma sociedade patriarcal. No Israel primitivo, a sociedade era formada pelas famílias estendidas centralizadas em um casal ancestral, formado por um patriarca e uma matriarca. Ambos possuíam suas funções essenciais para a manutenção da unidade desta sociedade familiar.
Existia um poder compartilhado onde a matriarca era responsável pela gestão das questões ligadas a administração da casa (a tenda), das economias (joias, ouro, prata, etc.), do comércio dos bens (gado, produtos do campo) e dos casamentos dos filhos (de preferência dentro do mesmo clã familiar).
O patriarca, por sua vez, cuidava das relações políticas com os povos vizinhos e, quando necessário, das questões das guerras.
Só observando isto em comparação com a definição de patriarcado algumas linhas acima, já podemos perceber que não havia um patriarcado estabelecido no antigo Israel.
Então, como a aplicação do termo “patriarcado” ao povo de Israel passou a ser aceita de forma tão natural em nossas igrejas?
A palavra “patriarcado” tem sua origem nas ciências sociais do século XIX. Surgiu quando os antropólogos que estudavam a sociedade grega e romana, baseados nos textos jurídicos, intuíram por estes textos que a figura paterna era dominante nestas sociedades clássicas, controlando a casa e o Estado.
Hoje, até mesmo estes estudos são refutados pelas pesquisas arqueológicas.
Quem pela primeira vez fez a associação do termo “patriarcado” com a sociedade do Antigo Testamento foi o sociólogo Max Weber, no início do século XX.
Influenciados por suas ideias, alguns teólogos começaram a aplicar seus conceitos sociológicos ao povo israelita, assumindo que, nesta sociedade, os patriarcas tinham autoridade absoluta, excluindo as mulheres de quaisquer cargos na comunidade.
Depois de algum tempo, os teólogos posteriores acostumaram-se a repetir o mesmo discurso, sem uma atualização devida frente às pesquisas históricas e arqueológicas que continuavam a acontecer desde então.
A comodidade da repetição sem qualquer crítica, acrescida da vulgarização do uso da palavra “patriarcado”, acabou por sedimentar uma compreensão equivocada em muitos cristãos.
Não só o antigo Israel foi taxado de patriarcal como também a própria Bíblia, do que resultam muitos problemas na sua correta interpretação.
A leitura da Bíblia sob esta concepção de patriarcado gera uma “cegueira espiritual” que impede a percepção das matriarcas e de sua importância frente a formação e manutenção do povo de Israel.
Além disto, causa uma reação emocional em muitas mulheres que, percebendo equivocadamente o texto bíblico como oriundo em uma sociedade patriarcal, acabam por criar uma certa aversão ao texto.
É mais do que chegada a hora de adquirirmos uma postura crítica perante muito do que recebemos da tradição evangélica e do senso comum da sociedade que nos cerca.
Ao invés de absorvermos tudo como verdades inquestionáveis, devemos utilizar a mente recebida de Deus para analisar tudo e reter o que é bom.
Paremos de repetir o que lemos ou ouvimos sem refletir.
Fujamos da ditadura dos jargões do senso comum.
Pesquisemos, estudemos e façamos como as mulheres e homens cristãos de Bereia que ousaram duvidar das pregações do apóstolo Paulo e que “examinavam diariamente das Escrituras para verificarem se tudo era, de fato, assim” (At 17.10-12).
Lídice Meyer Pinto Ribeiro
Membro da Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo, SP
Pós-Doutora em Antropologia e História
Professora da Universidade de Lisboa, Portugal