Caderno 2 - Departamentos InternosMUSEU REV. VICENTE THEMUDO LESSA

“Cartas de 1902”: a correspondência entre os missionários norte-americanos às portas da cisão presbiteriana de 1903

A instalação do Museu e Arquivo Histórico “Rev. Vicente Themudo Lessa”, acontecida no último dia 23 de junho, possibilitou que um vasto acervo documental guardado nos armários e nas gavetas de diversos departamentos da igreja fosse reunido em um só lugar, no 1º andar do Edifício “31 de Julho”, à Rua da Consolação, em São Paulo. Aproximadamente 60% do acervo já se encontra identificado, organizado e acomodado em nossas instalações. Portanto, já está disponibilizado aos pesquisadores e estudiosos da história da IPI do Brasil e àqueles que quiserem visitá-lo. Dentro em breve iniciaremos o programa de visitas presenciais monitoradas bem como abriremos os canais para visitas virtuais.

Há, porém, parte do acervo que ainda se encontra em processo de identificação e catalogação. Em meio a esse abrir pacotes e caixas, fizemos inesperada descoberta: um conjunto de cartas datadas do ano de 1902.

Na verdade, é importante correspondência mantida entre os missionários presbiterianos norte-americanos que trabalhavam no Brasil: Samuel Rhea Gammon, Roberto Frederico Lenington, Horace Selden Allyn, John Merrill Kyle e outros.

O conjunto de cartas encontrado revelou ser parte de uma consulta que o Rev. Gammon, presidente do Sínodo da Igreja Presbiteriana no Brasil, fez aos missionários norte-americanos, em tempo de graves conflitos entre lideranças eclesiásticas nacionais e alguns desses obreiros estrangeiros.

As cartas foram encontradas quando manuseávamos pacotes oriundos do chamado “Arquivo Nacional”, avolumado lote de papéis e periódicos embalados e etiquetados no final dos anos 1980 pela arquivista Heloísa Archero Araújo a pedido do Rev. Roberto Vicente Cruz Themudo Lessa.

Um desses pacotes guardava material da Missão Presbiteriana do Brasil, organismo ligado à Igreja Presbiteriana (PCUSA) e que encerrou suas atividades em 1985. As cartas estavam nesse pacote em meio aos outros papéis.

Estávamos diante de um material ligado ao processo que resultou no surgimento de nossa denominação.

Para melhor situar: líderes nacionais, incluindo pastores e presbíteros, vinham compondo, desde a década final do século XIX, uma pauta de reivindicações, dentre as quais a obtenção de independência eclesiástica em relação às matrizes norte-americanas, com a saída dos missionários dos concílios pertencentes ao Sínodo presbiteriano brasileiro.

Embora no ano de 1888 tivesse se instalado o Sínodo Presbiteriano no Brasil com poderes de Assembleia Geral, ainda não se concretizara na prática a autonomia da igreja brasileira.

O líder mais destacado do grupo nacionalista era o Rev. Eduardo Carlos Pereira, pastor da Igreja Presbiteriana de São Paulo.

Esta se constituía na maior e, muito provavelmente, mais rica igreja da denominação. Pereira era pastor eleito dessa comunidade desde 1888, sendo integralmente mantido por ela.

Esse dado tem capital importância, pois as missões norte-americanas controlavam as finanças da Igreja Presbiteriana no Brasil com a força das dotações em dólar. Eduardo Carlos Pereira, portanto, não dependia do “money power” (expressão em inglês que ele usava para referir-se ao domínio missionário: “poder do dinheiro”).

Não eram poucos os missionários que tinham acumulado diferenças e enfrentamentos com o Rev. Eduardo Carlos Pereira.

Em 6 de março de 1902, as páginas do jornal O Estandarte abrigaram o lançamento da chamada “Plataforma”, subscrita por Eduardo Carlos Pereira (pastor da 1ª Igreja de São Paulo), Bento Ferraz (pastor da Igreja de Campinas), Antônio Gomes da Silva Rodrigues (presbítero da Igreja Unida), Remígio de Cerqueira Leite (presbítero da 1ª Igreja de São Paulo), Antônio Ernesto da Silva (presbítero da 1ª Igreja de São Paulo) e Joaquim Alves Corrêa (um dos fundadores de O Estandarte).

Dirigida à “comunidade presbiteriana brasileira”, a “Plataforma” pretendia sanar o que chamava de “enfraquecimento geral da Igreja Presbiteriana”, apresentando um “programa” de cinco reivindicações, das quais a segunda, literalmente, solicitava: “desligamento dos missionários dos presbitérios nacionais”.

A “Plataforma” incluía também o controverso tema do papel da educação na vida da igreja e a questão da maçonaria que, desde o final de 1898 provocava diferentes reações por parte dos crentes presbiterianos.

Foi esse o contexto no qual as cartas foram escritas. Firmara-se um quadro tenso, repleto de desconfianças e de diferenças de opinião no presbiterianismo brasileiro.

Examinemos agora o conjunto dessas preciosas cartas, com uma referência mais longa à missiva dirigida aos missionários por Samuel R. Gammon, escrita em São Paulo na data de 7 de março de 1902 (um dia após a publicação da “Plataforma” em O Estandarte).

Na verdade, a carta encaminhava uma minuta de proposta ao Sínodo, que estabelecia um “Acordo entre a Igreja Presbiteriana no Brasil e as Igrejas Presbiterianas na América do Norte que mantêm trabalho missionário no Brasil, colocando novas bases para o encaixe institucional e financeiro das missões no âmbito do Sínodo do Brasil.

Gammon queria saber dos missionários se concordavam em retirar-se dos concílios brasileiros, continuando a trabalhar no país sem assento e voto nos presbitérios nacionais, nas bases preconizadas pela minuta.

Para obter respostas mais objetivas à enquete, Gammon propôs três questões-síntese a serem respondidas pelos missionários.

O conjunto documental, além da referida circular de Gammon, cartas-resposta dos seguintes missionários:

  • James T. Houston, redigida em Florianópolis, SC, aos 21 de março;
  • William M. Thompson, redigida em Caxias, MA, aos 4 de abril;
  • George A. Landes, redigida em Castro, PR, aos 8 de abril;
  • Horace S. Allyn, redigida no Rio de Janeiro aos 16 de abril;
  • William M. Thompson, redigida em Caxias, MA, aos 21 de abril;
  • John M. Kyle, redigida em Nova Friburgo, RJ, aos 24 de abril;
  • Carlyle R. Womeldorf, redigida no Maranhão em abril (a carta encontra-se danificada, impedindo que se conheça o dia do mês);
  • Flamínio Augusto Rodrigues, redigida em Descalvado, SP, aos 4 de maio;
  • Charles R. Morton, redigida em Americana, SP, aos 6 de maio;
  • Roberto F. Lenington, redigida em Florianópolis, SC (a carta encontra-se danificada, impedindo que se conheça o dia e o mês; na mesma carta encontram-se registradas respostas breves de George L. Bickerstaph e de John M. Kyle. O registro de Kyle assinala o local e a data de sua resposta: Nova Friburgo, aos 24 de abril).

A maioria dos missionários revelou em suas respostas propensão em aceitar o seu desligamento dos presbitérios brasileiros. Outra parte, por sua vez, demonstrou desconfiança quanto ao futuro do presbiterianismo no Brasil diante de uma retirada imediata dos missionários, em momento julgado crítico e incerto.

O nome de Eduardo Carlos Pereira e as referências aos seus “seguidores” aparecem em quase todas as respostas dadas a Gammon.

Pode-se constatar, a partir do conteúdo e das expressões usadas nas cartas, a dedicação dos missionários ao trabalho que faziam e o seu comprometimento com a evangelização do país.

Finalmente, é possível perceber nas cartas como a questão maçônica foi importante para alterar a postura de alguns dos missionários, inicialmente favorável ao desligamento.

Melhor estudadas, as “Cartas de 1902” jogarão luz sobre nossos relatos e nos ajudarão a ter uma compreensão mais exata a respeito daqueles dias decisivos, nos quais se definiam os novos contornos do presbiterianismo no Brasil e o surgimento da IPI do Brasil.

Rev. Éber Ferreira Silveira Lima
Pastor da IPI do Cambuci, São Paulo, SP, e curador do Museu Rev. Vicente Themudo Lessa

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