NO SANGUE ESTÁ A VIDA
O sangue é um componente do corpo que aparece em toda a Bíblia como um importante elemento físico e simbólico.
Fisicamente, a Bíblia trata do sangue como um ingrediente do corpo de seres humanos e animais. Também existe a referência a ele como o suco das frutas como as uvas.
Simbolicamente, no Antigo Testamento, o sangue exerce um importante papel, principalmente no que se refere aos sacrifícios. Além do uso nesse campo específico, ele também representa uma função na dieta alimentar do povo.
Até hoje este elemento simbólico influencia pessoas em relação a práticas da nossa sociedade, como a transfusão de sangue.
Nesse artigo pretendemos lançar os olhos sobre alguns textos bíblicos e entender o universo simbólico representado nesse tecido do corpo humano e como aplicar essa figura à nossa realidade.
Uma visão geral no Antigo Testamento
Desde muito cedo, o ser humano pôde observar que havia uma relação entre o líquido vermelho que saía de dentro das pessoas e animais quando feridos e o seu vigor físico. A observação do corpo e suas reações transparece na Bíblia em certas relações, em que alguns órgãos como coração, fígado, rins e outros estão associados a sentimentos, enquanto o sangue e a gordura estão relacionados à força vital.
A palavra que expressa essa força vital é traduzida de diferentes formas. Segundo a versão Almeida Revista e Atualizada, em Gênesis 12.5 é traduzida por pessoas; em Eclesiastes 6.7 é apetite; Ezequiel 18.4 usa a tradução mais comum, que é alma. Em Gênesis 9.4, Levítico 17.11 e 14, e Deuteronômio 12.23 ela é traduzida por vida.
É importante notar que, em Levítico14, o sangue é utilizado pelos sacerdotes no ritual de cura das doenças de pele que causam impureza.
Paradoxalmente, o sangue também representa a morte. Essa é, inclusive, a representação mais comum para o sangue. É a própria imagem da violência (Is 59,3). Representa as feridas de guerra (2Sm 1.22).
Ele é usado como metáfora para morte violenta, assassinato (1Re 9.26). Pessoas violentas são chamadas homens de sangue (Sl 139.19).
Representando a força vital de uma pessoa, no Antigo Testamento, o sangue evoca dois sentidos distintos, opostos até: a vida e a morte.
O sacrifício
Nos sacrifícios que implicavam na imolação de um animal, o ofertante e os sacerdotes poderiam comer algumas partes do animal oferecido. Isso fazia parte do ritual. Algumas partes, porém, eram vedadas a eles e duas partes da oferenda são proibidas de serem consumidas pelos seres humanos: o sangue e a gordura. O sangue deveria ser aspergido sobre o altar, especialmente sobre as suas pontas, e a gordura deveria ser queimada (Lv 7.2-5; 17.6).
A explicação para a proibição do consumo do sangue está no fato de que nele está a vida e ele é usado apenas para a expiação pelos pecados (Lv 17.11).
A tradução desse verso tem um dado muito interessante. É uma palavra hebraica que aparece três vezes nesse versículo.
Na primeira vez, aparece na expressão traduzida ou por vida da carne (Atualizada) ou por alma da carne (Corrigida).
Na segunda parte do verso, aparecem as outras duas, que são traduzidas de forma diferente uma da outra: “para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação em virtude da vida”.
Se traduzirmos as duas vezes em que a palavra aparece por vida, teremos uma relação direta em que uma vida é entregue como forma de expiação de outra vida.
A alimentação
Outro contexto em que a Bíblia destaca a relação entre sangue e vida transparece em Deuteronômio 12.20-23. Esse texto está no contexto da dispersão do povo judaico para além das regiões próximas ao templo de Jerusalém.
Trata da dieta alimentar, especificamente do consumo de carne de vacas e ovelhas por aqueles que habitavam longe o suficiente para impedi-los de ir ao templo para levar o gado para o sacrifício.
Há de se perceber que a ênfase do texto está na impossibilidade de ir a Sião. Por isso lhes é autorizado a alimentação sem a necessidade do ritual sacerdotal. Portanto, a ênfase do texto – e de todo o capítulo de 12 – está no sacrifício e na centralidade do templo de Jerusalém como lugar de culto.
Se alguém desejasse comer carne, impossibilitado pela distância de comparecer ao templo, poderia desfrutar dessa iguaria, mas deveria observar o cuidado de não comer o sangue do animal com a carne. Nesse caso, o sangue deveria ser derramado e enterrado.
É importante perceber que, mesmo em se tratando do uma questão puramente alimentar, as regras sacerdotais do derramamento sacrificial deveriam ser observadas. Nesse contexto ainda se preserva a relação entre sangue e vida.
O sangue como sinal de proteção
Há dois trechos no livro de Êxodo que requerem a nossa atenção sobre esta questão por apresentarem um outro viés.
A passagem de Êxodo 4.24-26 é provavelmente uma das mais difíceis de interpretar em toda a Bíblia. Ela tem desafiado exegetas e teólogos ao longo dos séculos. O que queremos destacar é que, nela, o sangue da circuncisão do menino, posto por Zípora em Moisés, o protegeu da violência que o ameaçava.
De certo modo, essa passagem faz lembrar Êxodo 12.7 e 13. Neste capítulo, conta-se a celebração da Páscoa na última noite em que os israelitas passaram no Egito e são dadas as instruções para a celebração da festa e, especialmente, a preservação da vida dos primogênitos.
Nas instruções, o sangue do cordeiro pascal deveria ser colocado nos umbrais das portas, pois ele tema função de ser um sinal para proteger a família celebrante da violência do anjo vingador e preservar os primogênitos.
Estas duas passagens são difíceis e apresentam diversas dificuldades interpretativas. Mas em ambas fica claro o uso do sangue como símbolo de preservação da vida diante da ameaça de morte.
A expiação de pecados
A relação entre sangue e vida se expressa também no ritual de expiação de pecados. Nele, um cordeiro ou bode era levado ao templo pelo pecador que colocava a mão sobre a cabeça do animal enquanto este era degolado. Esse gesto representava a transferência da culpa do pecador para o cordeiro e, pelo derramamento do seu sangue, o pecado era perdoado. Em Levítico 17.11 há a clara afirmação de que o sangue faz a expiação dos pecados.
Para nós, cristãos, essa é um ponto de vital importância. O livro de Hebreus retoma essa questão do sacrifício fazendo uma releitura em Jesus Cristo e sua morte na cruz (Hb 9.1-10,18). O autor desse livro chega a repetir a máxima: “Sem derramamento de sangue, não há remissão” (Hb 9.22) apontando para a cruz como fator essencial para o perdão de pecados, para a nova vida e nova aliança.
O Senhor Jesus já havia estabelecido essa relação ao identificar a sua morte na releitura da ceia pascal e estabelecer o cálice da nova aliança no seu sangue (1Co 15.25). Os evangelhos compartilham dessa mesma leitura ao destacar a afirmação de João Batista de que Jesus é o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1.29).
Algumas conclusões
A interdição imposta pela tradição sacerdotal tem levado pessoas a recusarem tratamentos médicos que envolvam o uso de sangue, como a transfusão. Entendem que ela se aplica à medicina atual e que, como no sangue está a vida, esta vida não pode ser transferida.
No entanto, a proibição se refere apenas ao sangue sacrificado, cuja finalidade era a expiação de pecados. E somente Deus pode expiar pecados. Portanto, o consumo do sangue e da gordura do sacrifício pertencem unicamente a Deus.
A perda de sangue indica a morte. O uso do sangue promove a vida.
Guardadas as devidas distâncias, Jesus deu o exemplo ao entregar seu próprio sangue para que os seres humanos tenham vida em plenitude. E somente pelo seu sangue o ser humano pode ter verdadeira vida.
No sangue está a vida. Portanto, compartilhar o sangue é um ato de amor e de compartilhamento da vida.
Rev. Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão
Pastor da 1ª IPI de Santos, SP,
Professor da Faculdade de Teologia de São Paulo da IPIB