A MULHER QUE DIVIDIU O CRISTIANISMO
Maria de Nazaré sempre esteve no centro das questões entre o Catolicismo e o Protestantismo, mas uma outra Maria não só separou o Catolicismo do Protestantismo como o Catolicismo Ocidental, Romano, do Catolicismo Oriental, Ortodoxo: Maria Madalena.
Maria Madalena, a primeira testemunha da ressurreição de Jesus, é a mulher mais citada em todo o Novo Testamento. Seu nome aparece 14 vezes nos Evangelhos. A importância do testemunho de Maria Madalena foi preservada nos textos da Igreja Primitiva: Epístola dos Apóstolos (séc. II), Didascália (séc. III), Canones Apostolorum Ecclesiastici (séc. IV) e Constituições Apostólicas (séc. IV). Os teólogos da Patrística como Tertuliano, Orígenes, Irineu, Hipólito de Roma, dentre outros, todos a defendiam como sendo a principal testemunha da ressurreição. Hipólito foi o primeiro a atribuir-lhe o título de Apóstola: “Dão-nos um bom testemunho aquelas que se tornaram apóstolas antes dos apóstolos enviados por Cristo. O próprio Cristo veio ao encontro dessas mulheres, para que se tornassem apóstolas de Cristo”. Tomás de Aquino também defendeu este título: “Ela tinha o ofício de apóstolo; de fato, ela era uma apóstola dos apóstolos, na medida em que era sua tarefa anunciar a ressurreição de nosso Senhor aos discípulos”.
A arte sacra primitiva sempre representou Maria Madalena nos acontecimentos do último dia da Paixão e na Ressurreição de Cristo. Na arte do Cristianismo Oriental, onde é celebrada com o título “igual aos apóstolos”, Madalena é sempre representada como a líder entre as mulheres que foram ao túmulo ungir o corpo de Cristo, as mirróforas. Já no cristianismo ocidental, a partir do sermão do Papa Gregório Magno (séc. VI) que associou Maria Madalena, Maria de Betânia e a mulher pecadora que unge Jesus como sendo a mesma mulher, a arte sacra sofreu uma transformação, bem como as interpretações teológicas. Enquanto Madalena permaneceu sendo para o Catolicismo Ortodoxo a testemunha da ressurreição de Jesus, no Catolicismo Romano sua imagem passa a ser associada a pecadora arrependida e penitente.
No século XVI Martinho Lutero resgatou o valor de Maria Madalena utilizando-a como um exemplo para o sacerdócio universal dos crentes: “Cristo faz dela uma pregadora, para que ela seja companheira e mestra dos queridos apóstolos.” Madalena tornou-se um estímulo para a ação evangelística das primeiras mulheres protestantes como Argula von Grumbach e Katharina Schutz Zell. Da mesma forma, a arte dos pintores reformados sempre retratou Maria Madalena ressaltando sua autoridade e importância na ressurreição.
João Calvino, ao contrário de Lutero, pouco tratou sobre Maria Madalena. Em seu comentário ao evangelho de João não dá nenhum destaque a ela, tratando o seu choro no túmulo de Cristo como inútil e supersticioso, sinal de uma mente cheia de erros. Nas Institutas apenas se refere a Madalena como exemplo de possessão diabólica.
A Igreja Católica Romana a partir do Concílio de Trento, por sua vez, reforçou a imagem de Maria Madalena como pecadora arrependida e penitente de forma a enfatizar os sacramentos da penitência e da confissão, além da intercessão dos santos, todos negados pelo protestantismo. A importância de Maria Madalena como testemunha da ressurreição foi ofuscada por uma estratégia da contrarreforma.
Em 1988, porém a Igreja Católica Romana começou a mudar sua visão sobre esta mulher quando o Papa João Paulo II, na Carta Apostólica Mulieris Dignitatem declarou: “Por isso ela é chamada também ‘a apóstola dos apóstolos’ Maria Madalena foi a testemunha ocular do Cristo ressuscitado antes dos apóstolos e, por essa razão, foi também a primeira a dar-lhe testemunho diante dos apóstolos. Este acontecimento, em certo sentido, coroa tudo o que foi dito em precedência sobre o ato de Cristo de confiar as verdades divinas às mulheres, de igual maneira que aos homens.”
Com esta afirmação, João Paulo II se aproximou das ideias de Lutero sobre o sacerdócio universal dos crentes: Homens e mulheres têm igualmente acesso às verdades divinas! E por fim, em 2016, o Papa Francisco reforçou o título de Apóstola dos Apóstolos dado a Maria Madalena conferindo ao dia a ela designado, 22 de julho, a mesma importância dos dias designados a cada um dos apóstolos homens, numa clara aproximação com o Catolicismo Ortodoxo.
Maria Madalena, uma mulher que foi retratada de muitas maneiras e utilizada como divisor de águas no cristianismo, cujo resgate de sua importância é um fator relevante para a reunificação da Igreja, vinte e um séculos depois.
Lídice Meyer Pinto Ribeiro
Membro da Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo, SP
Pós-Doutora em Antropologia e História
Professora da Universidade de Lisboa, Portugal